De início, é preciso esclarecer que não pertence à alçada municipal fiscalizar a capacidade ou legitimidade do exercício profissional de ninguém, ou examinar se a pessoa está auferindo lucros ou prejuízos. Não cabe ao Município investigar oficialmente se o registro de um Médico é legítimo, ou se aquele Contador entende realmente de Contabilidade. Compete à Administração Municipal, isso sim, fiscalizar os aspectos de segurança, higiene, localização, horário de funcionamento, sossego público e se a atividade autorizada não foi desvirtuada para outras não aprovadas. Não importa qual seja a atividade e sua localização. Parte da Sentença de Juiz sobre a exigência de alvará de funcionamento de um templo religioso: “(...) Outro equívoco da Impetrante, reside no fato de que, não obstante, no âmbito deste Município, tenha a isenção da Taxa de Funcionamento, tal fato não lhe exime de obter a respectiva Licença de Funcionamento, em virtude da existência de norma legal lhe impondo tal obriga...
Por Daniel Corrêa Szelbracikowski
Em dezembro de 2016 foi publicada a Lei
Complementar (LC) 157 que alterou a LC 116/03 relativamente ao imposto sobre
serviços (ISS) e a Lei 8.129/1992 que dispõe sobre a improbidade
administrativa.
Já comentamos aqui na ConJur acerca
da aparente inconstitucionalidade da tributação de negócios jurídicos que não
se qualificam como serviços, como é o caso do streaming (item 1.09 da lista de
serviços) e do armazenamento e hospedagem de dados (item 1.03). Frisamos que a
atual repartição constitucional de competências tributárias combinada com a
revolução tecnológica experimentada pela sociedade possibilita a ausência de
sujeição de determinadas utilidades ao ISS e ICMS, simultaneamente. Isso
revelaria a necessidade de reforma do cinquentenário sistema tributário para
substituir o ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins, tributos que gravam o consumo, por
um IVA Nacional, não-cumulativo. Isso facilitaria a cobrança de tributo sobre
todo e qualquer processo de agregação econômica de valor.
A par dessa questão, a recente LC
157/16 introduziu normas relacionadas à denominada “guerra fiscal” de ISS que
serão objeto deste exame.
A guerra fiscal caracteriza-se pela
competição generalizada entre os entes subnacionais pelos investimentos
privados [1] tendo como
contrapartida a concessão de incentivos ou benefícios tributários [2]. Essa disputa tem
impacto sobre a livre concorrência e a receita pública, que tende a um ponto de
equilíbrio “no fundo do poço” (racetothebottom) [3]. Dentre outras
possíveis causas, a guerra fiscal é reflexo da falta de cooperação no
federalismo brasileiro, resultante da ausência de uma política de
desenvolvimento nacional [4].
Para evitar a guerra fiscal relacionada
ao ISS (entre municípios), a LC 157/16 procurou regular o disposto nos incisos
I e III do §3º do art. 156 da Constituição Federal. Referidos artigos impõem à
Lei Complementar o estabelecimento das alíquotas mínimas e máximas do imposto,
bem como a forma e as condições para a concessão de incentivos fiscais.
Até agora a LC 116/03 era omissa quanto
à alíquota mínima e à forma de concessão dos incentivos fiscais de ISS. A
questão vinha sendo tratada temporariamente pelo artigo 88 do ADCT, o qual
estabelece alíquota mínima de 2% para o ISS [5] e veda a concessão de
incentivos que resultem, direta ou indiretamente, na redução da referida
alíquota.
Nesse ponto, a LC 157/2016 praticamente
repetiu o que já estava posto no ADCT. Acresceu à LC 116/03 o artigo 8-A para
estabelecer, em seu caput, a mesma alíquota mínima já prevista no ADCT (2%) [6]. No parágrafo
primeiro do mesmo dispositivo [7] vedou definitivamente
a possibilidade de concessão de incentivos fiscais de ISS, seja qual for a sua
forma de atuação sobre a “regra-matriz de incidência tributária” [8]. Em regra [9], qualquer incentivo
que atue sobre a alíquota, a base de cálculo ou mediante a concessão de
créditos será considerado ilegal.
Em relação à fixação da alíquota
mínima, poder-se-ia sustentar ter havido afronta à autonomia municipal (artigo
18 da CF). No entanto, a ponderação entre os princípios da autonomia municipal
e do pacto federativo sugere a prevalência do segundo (artigos 1º e 60, § 4º, I
da CF). A fixação de alíquota mínima é essencial para evitar a concorrência
fratricida entre os municípios. Garante, portanto, a harmonia do pacto
federativo. Esse sopesamento já havia sido realizado pelo constituinte derivado
quando, por intermédio da EC 37/02, introduziu a norma do artigo 88, I, do
ADCT. Sem esse piso o caminho estaria aberto para os municípios fixarem
alíquotas reduzidíssimas do imposto com o consequente recrudescimento da guerra
fiscal.
Quanto à forma de concessão de incentivos
fiscais, a LC 157/16 parece não ter suprido a exigência do artigo 156, §3º, III
da CF. Isso porque a Constituição não veda definitivamente a concessão de
incentivos de ISS. Ao contrário, a Carta Maior reza que caberá à lei
complementar “regular a forma e as condições como isenções, incentivos e
benefícios fiscais serão concedidos e revogados”. O verbo “serão” denota que o
Constituinte não pretendia vedar todo e qualquer incentivo fiscal, mas admitia
que esses pudessem ser concedidos após a lei complementar estabelecer “a forma”
e “as condições” para tanto. No mesmo sentido é a previsão para a “revogação”
de incentivos que pressupõe logicamente sua prévia concessão. A necessidade de
regulação por lei complementar gerou apenas uma proibição temporária para a
concessão de incentivos, nos termos do artigo 88, II do ADCT, enquanto não
satisfeita a referida condição legislativa.
Ao deixar de regular a forma e as
condições pelas quais os incentivos fiscais poderiam ser concedidos e
simplesmente vedar a sua concessão, a lei complementar parece ter descumprido
sua finalidade à luz do artigo 156, §3º, III da CF.
Destaca-se, ainda, a previsão da LC
157/16 de que será nula a lei ou o ato do município ou do Distrito Federal que
desrespeitar as referidas vedações “no caso de serviço prestado a tomador ou
intermediário localizado em município diverso daquele onde está localizado o
prestador do serviço”, possibilitando ao “prestador do serviço, perante o
município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo,
o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de
Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula” (artigo 8º-A, §§ 2º e 3º).
Além dessa sanção direcionada à pessoa jurídica de direito público (município),
a lei complementar acresceu o artigo 10-A à Lei de Improbidade Administrativa
(Lei 8.429/1992), segundo o qual o agente público que conceder (ato comissivo)
ou mantiver (ato omissivo) benefício fiscal contrário às diretrizes constantes
do artigo 8-A da LC 116/03 responderá por ato de improbidade administrativa,
perderá a função pública, terá seus direitos políticos suspensos de 5 a 8 anos
e pagará multa de até três vezes o valor do benefício.
Essas três regras têm o condão de
contribuir para a prevenção da guerra fiscal de ISS. Isso porque penalizam o
agente público que mantiver ou conceder incentivos fiscais e o próprio
município na hipótese em que o serviço é prestado a tomador localizado em
município diverso. Em suma, se o município reduz ilegalmente a alíquota mínima
para serviço prestado exclusivamente em seu território — ou seja, causa um
prejuízo apenas para si — a sanção ficará circunscrita ao agente público. Se o
serviço for prestado a tomador ou intermediário localizado em outro município —
ou seja, o prejuízo extrapola os seus limites territoriais para atingir
municípios vizinhos — haverá sanção também aos cofres do município incentivador
que restituirá integralmente o tributo pago pelo contribuinte, sem prejuízo da
aplicação da pena de improbidade ao agente público.
Registre-se que o projeto original em
trâmite no Senado previa a inclusão de um 4º parágrafo ao artigo 3º da LC
116/03 em que expressamente se transferia a competência do imposto para o
município do domicílio do tomador (ou intermediário) do serviço na hipótese de
concessão de incentivo fiscal de ISS [10]. Essa norma foi
vetada pela Presidência da República [11], sob o plausível
fundamento de que seriam criados problemas operacionais para as empresas em
função da modificação do sujeito ativo da relação jurídica tributária depois da
realização do fato gerador. Apesar do veto presidencial em relação ao §4º,
permaneceram hígidas as normas dos §§2º e 3º do artigo 8-A da LC 116/03. Estas,
conforme visto, induzem [12] os municípios a não
concederem incentivos que afetem a concorrência intermunicipal, sob pena de
ainda serem obrigados a restituir o tributo incentivado.
O mecanismo criado tende a ser mais
eficaz para acabar com a guerra fiscal do que o estabelecido no artigo 8º, II
da LC 24/75 para os incentivos fiscais de ICMS. No caso do ICMS, o Estado que
concede incentivo fiscal ilícito deve cobrar a diferença de imposto do
contribuinte. Ou seja, relativamente ao ICMS, o Estado que age
inconstitucionalmente é obrigado pela lei a aproveitar-se de sua própria
torpeza mediante a cobrança do diferencial de imposto. No caso do ISS isso
aparentemente não ocorrerá. O município incentivador perderá o que arrecadou
com o benefício na hipótese de o tomador do serviço localizar-se em Município
diverso.
Além de consubstanciarem um “incentivo
negativo” [13] aos entes
subnacionais para a realização da guerra fiscal, as novas disposições legais
revelam um “diálogo institucional” [14] entre o Congresso
Nacional e o Supremo Tribunal Federal que, em 2016, fixou a tese de que “é
inconstitucional lei municipal que veicule exclusão de valores da base de
cálculo do ISSQN fora das hipóteses previstas em lei complementar nacional” no
julgamento da ADPF 190 [15].
Em suma, a LC 157/2016 parece ter
descumprido sua finalidade ao deixar de regular o artigo 156, §3º, III da CF
relativamente à forma e às condições para a concessão de incentivos fiscais de
ISS, simplesmente vedando-os. Por outro lado, andou bem ao estabelecer sanções
para a concessão de incentivos fiscais ilícitos de ISS. Ao prever a
responsabilização do agente público e impor sanção patrimonial ao município, a
lei desestimula a realização da guerra fiscal entre os municípios.
1 Guilherme Bueno
de Camargo explicita que a guerra fiscal decorre da generalização “(...) de uma
competição entre entes subnacionais pela alocação de investimentos privativos
por meio da concessão de benefícios e renúncia fiscal, conflito este que se dá
em decorrência de estratégias não cooperativas dos entes da Federação e pela
ausência de coordenação e composição dos interesses por parte do governo
central” (CAMARGO, Guilherme Bueno de. A guerra fiscal e seus efeitos:
autonomia x centralização. In: CONTI, José Maurício (Org.). Federalismo fiscal.
São Paulo: Manole, 2004, p. 187).
2 Segundo o Supremo
Tribunal Federal, “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas
jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento
econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”
(577348, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, REPERCUSSÃO
GERAL - DJe-035 26-02-2010).
3 Comentando sobre
a Guerra Fiscal de ICMS, José Roberto Afonso assenta que “(...) a pior faceta
da guerra fiscal não passa pela tributação em si, nem mesmo em minar a receita
efetiva e as finanças estaduais, mas a grave distorção que impõe a livre
concorrência no País. Como é um incentivo que afeta diretamente o nível de
preço, e permite uma arbitrariedade ao infinito, plantas iguais, de produtos
iguais, suportam um ônus de carga diferente dependendo do local em que for
instalada e das vantagens que conseguiram angariar do Estado numa negociação
individualizada – e, na maioria das vezes, nada publica. Talvez não haja uma
forma de intervenção estatal tão aguda na economia porque distorce totalmente
as condições de concorrência. Foi criada uma lógica perversa: muitos
empreendedores, mesmo que talvez preferissem evitar o risco de um benefício
irregular, são compelidos à guerra fiscal simplesmente se seu concorrente
conseguir uma vantagem fiscal que o deixe em melhor condição para competir.
Neste contexto, por opção ou falta dela, por atração ou por reação, a guerra
fiscal do ICMS se tornou uma prática universal e chegou perto de provocar um
equilíbrio contraditório: quando todos os estados concedem incentivos, de uma
ou outra forma, e quanto todos os investidores produtivos acabam sendo
incentivados, de certa forma se chegou a um equilíbrio, entretanto, ‘no fundo
do poço’ (tomando emprestada a expressão racetothebottom, comum na literatura
internacional sobre a matéria)” (AFONSO, José Roberto. ICMS: diagnóstico e
perspectivas. In: REZENDE, Fernando (Org.). O federalismo brasileiro em seu
labirinto: crise e necessidade de reformas. Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 212).
Vide também: SHAH, Anwar. Competição inter-regional e cooperação federal:
competir ou cooperar? Não é essa a questão. Fórum Internacional sobre
Federalismo no México Veracruz. México, 15-17 novembro de 2001, p. 7.
4 Vide a propósito:
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo:
Max Limonad, 2003.
5 Excetuados os
serviços de (i) execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de
obras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras
semelhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenagem e
irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação e montagem
de produtos, peças e equipamentos (item 7.02 da lista anexa de serviços), (ii)
reparação, conservação e reforma de edifícios, estradas, pontes, portos e
congêneres (item 7.05) e de transporte coletivo municipal rodoviário,
metroviário, ferroviário e aquaviário de passageiros (item 16.01).
6 Art. 8º-A. A
alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois
por cento).
7 § 1º O imposto
não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários
ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido
ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente,
em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima
estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens
7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.
8 Vide CARVALHO,
Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 26ª Ed., São Paulo: Saraiva,
2014, pp. 331/335.
9 Exceto para os
serviços também excluídos da alíquota mínima (itens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista
anexa à lei).
10 “§ 4º Na
hipótese de descumprimento do disposto no caput ou no § 1o, ambos do art. 8o-A
desta Lei Complementar, o imposto será devido no local do estabelecimento do
tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele
estiver domiciliado.”
11 Justificativa ao
veto do § 4º do art. 3º da LC 116/03 (na redação da LC 157/16): “Os
dispositivos imputariam elevado custo operacional às empresas. Além disso, a
definição da competência tributária deve vir expressamente definida em lei
complementar, não cabendo sua definição a posteriori, como pode ocorrer nas
hipóteses previstas pelos dispositivos.” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Msg/VEP-720.htm)
12 Sobre as normas
indutoras de comportamentos em matéria tributária, vide: SCHOUERI, Luís
Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de janeiro:
Forense, 2005.
13 Essa foi a
expressão utilizada na exposição de motivos da LC 157/2016: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/108390
14 Sobre o tema,
vide: VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo institucional e controle de
constitucionalidade: debate entre o STF e o Congresso Nacional. São Paulo:
Saraiva, 2015.
15 Julgamento
realizado pelo Plenário do STF em 29/09/2016.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é
advogado, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Tributário
e sócio da Advocacia Dias de Souza
Fonte: Revista
Consultor Jurídico
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