De início, é preciso esclarecer que não pertence à alçada municipal fiscalizar a capacidade ou legitimidade do exercício profissional de ninguém, ou examinar se a pessoa está auferindo lucros ou prejuízos. Não cabe ao Município investigar oficialmente se o registro de um Médico é legítimo, ou se aquele Contador entende realmente de Contabilidade. Compete à Administração Municipal, isso sim, fiscalizar os aspectos de segurança, higiene, localização, horário de funcionamento, sossego público e se a atividade autorizada não foi desvirtuada para outras não aprovadas. Não importa qual seja a atividade e sua localização. Parte da Sentença de Juiz sobre a exigência de alvará de funcionamento de um templo religioso: “(...) Outro equívoco da Impetrante, reside no fato de que, não obstante, no âmbito deste Município, tenha a isenção da Taxa de Funcionamento, tal fato não lhe exime de obter a respectiva Licença de Funcionamento, em virtude da existência de norma legal lhe impondo tal obriga...
Por Kiyoshi Harada
As limitações ao uso da propriedade, decorrentes de legislações
ambientais ou urbanísticas, têm reflexo imediato na cobrança do IPTU.
Às vezes as restrições são de tal ordem que acabam por subtrair
uma das faculdades inerentes à propriedade, que é o direito de gozar da coisa
exteriorizando-se na percepção de seus frutos e na sua utilização. Sem a
possibilidade de exploração econômica da coisa a propriedade perde o seu valor
de mercado e, por conseguinte, torna impossível ao seu proprietário o exercício
da outra faculdade que lhe é inerente, ou seja, o direito de dispor da coisa,
tudo nos termos do art. 1.228 do CC.
Uma propriedade urbana esvaziada em seu conteúdo econômico, quer
em razão da preservação dos mananciais d’água, quer em função da manutenção de
matas virgens, quer em virtude de interesses urbanísticos, não pode ser objeto
de tributação pelo IPTU.
Falece ao proprietário nessas condições a necessária capacidade
contributiva de que cuida o § 1º do art. 145 da Constituição Federal.
Outrossim, se bem interpretado o texto legal definidor do fato
gerador verificar-se-á que não haverá possibilidade desse fato gerador ocorrer
concretamente em relação ao proprietário de imóvel despido de conteúdo
econômico, como passaremos a demonstrar.
A Constituição Federal outorgou aos Municípios competência para
instituir o imposto sobre “propriedade predial e
territorial urbana” (art. 156, I).
Instituindo o fato gerador do IPTU, em âmbito nacional, dispõe o
art. 32 do CTN:
“O imposto de competência dos Municípios, sobre a
propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o
domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como
definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município”.
Para justificar o aparente conflito entre o dispositivo do
Código, que inclui o domínio útil e a posse, e o preceito constitucional, que
se limita à propriedade predial e territorial urbana sustentamos o seguinte:
“Entendemos que a norma definidora do fato gerador, seja a da
lei municipal, seja a do CTN, não pode ser interpretada em sua literalidade. O
IPTU é um imposto de natureza real, que grava a disponibilidade
econômica do imóvel, nunca o imóvel ou seu título aquisitivo. O fato gerador, que é um elemento jurídico, não pode ser
confundido com o objeto ou matéria tributável, que é um elemento extrajurídico. Por isso, o fato
gerador, definido no art. 32 do CTN, dever ser entendido, e em consonância com
legislação ordinária de cada Município, como o fato de alguém ser proprietário, titular de domínio útil ou possuidor de bem
imóvel, em 1º de janeiro de cada ano. Não se pode confundir a propriedade, elemento extrajurídico,
com o fato gerador, elemento jurídico.
Para os que entendem que o IPTU grava a propriedade, é o caso de se perguntar:
como fica o imposto em relação a um imóvel sem dono? Não grava, também, o
título dominial, pois, nos termos do art. 118 do CTN, a validade, a invalidade,
a nulidade ou a anulabilidade do título jurídico da propriedade são
irrelevantes para o cumprimento da obrigação tributária, que nasce da
ocorrência do fato gerador. O essencial é que o bem imóvel esteja na
disponibilidade econômica do contribuinte, lícita ou ilicitamente, não importa.
Daí a correta inclusão do domínio útil e da posse, como prescrito no CTN.”[1]
No dizer de Héctor Villegas o fato gerador do IPTU “consiste na situação jurídica de
ser proprietário ou possuidor a título de dono de um bem imóvel: vale dizer que
a circunstância geradora da obrigação tributária é o fato de ter a
disponibilidade econômica do imóvel como proprietário ou fazendo as vezes de
tal”.[2]
Por isso, o CTN, em seu art. 34 definiu o contribuinte do IPTU
nos seguintes termos:
“Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio
útil, ou o possuidor a qualquer título”.
Só uma ressalva quanto à expressão final “possuidor a qualquer título”. Não se trata de posse desprovida de
conteúdo econômico, como a posse do locatário. O possuidor a que se refere o
art. 34 do CTN é aquele detentor de posse de conteúdo econômico, como a da
pessoa que detém fisicamente a posse da coisa. Trata-se de posse como sentinela
avançada da propriedade, do contrário, estaria se violando o princípio da
capacidade contributiva previsto no § 1º do art. 145 da CF.
Ora, se o proprietário do imóvel for atingido pelas restrições
legais que lhe retiram a disponibilidade econômica da propriedade não há como
falar em ocorrência do fato gerador do IPTU, que corresponde exatamente ao fato
de o proprietário ou de quem faz suas vezes deter a disponibilidade econômica
do imóvel.
Finalmente, um imóvel despido de conteúdo econômico não teria,
dentro da legalidade, meio de apuração da sua base de cálculo, que é o valor
venal do imóvel apurado de conformidade com a legislação específica que aprova
a Planta Genérica de Valores.
Não há, nem poderia haver nas PGVs o valor unitário do metro
quadrado de um imóvel que está fora do mercado imobiliário, por impossibilidade
legal de sua utilização.
Nem se argumente com a avaliação por perícia. Esta não é o meio
legal de apuração do valor venal que, por ser um dos elementos do fato gerador,
está submetido ao império da legalidade (art. 146, III, “a” da CF e art. 33 do
CTN). A avaliação é meio idôneo para contraditar o valor venal apurado de conformidade
com a legislação em vigor, bem como meio de apuração do justo valor da
indenização em caso de desapropriação.
E pouco importa se a restrição ao uso da propriedade decorre de
legislação federal, estadual ou municipal. O fato é que, sem a disponibilidade
econômica da propriedade, não haverá ocorrência do fato gerador do IPTU a
legitimar sua cobrança pelo Município.
Finalmente, em casos extremos de limitação ao direito de
propriedade impõe-se a desapropriação indireta da propriedade atingida em seu elemento
essencial, quer seja, o direito de uso pelo seu proprietário. O particular
prejudicado por razões de interesse coletivo deve ser ressarcido. Como as
restrições ao uso da propriedade de natureza ambiental ou urbanística têm
fundamento nos interesses coletivos, os ônus desses desfalques patrimoniais do
particular atingido devem igualmente ser suportados pela comunidade como um
todo, isto é, ressarcidos pelo dinheiro público.
Notas:
[1] Cf. nosso Direito
tributário municipal, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.93.
[2] Curso de finanzas, derecho financero y tributário, 2ª ed., Buenos Aires: Depalma, 1975, p. 485-486.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças
pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em
várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados
de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex
Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da
cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.
Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia
Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio
de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório
Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do
Município de São Paulo.
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