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A JUSTIÇA, O PODER DE POLÍCIA E O ALVARÁ DE ESTABELECIMENTO

  De início, é preciso esclarecer que não pertence à alçada municipal fiscalizar a capacidade ou legitimidade do exercício profissional de ninguém, ou examinar se a pessoa está auferindo lucros ou prejuízos. Não cabe ao Município investigar oficialmente se o registro de um Médico é legítimo, ou se aquele Contador entende realmente de Contabilidade. Compete à Administração Municipal, isso sim, fiscalizar os aspectos de segurança, higiene, localização, horário de funcionamento, sossego público e se a atividade autorizada não foi desvirtuada para outras não aprovadas. Não importa qual seja a atividade e sua localização. Parte da Sentença de Juiz sobre a exigência de alvará de funcionamento de um templo religioso: “(...) Outro equívoco da Impetrante, reside no fato de que, não obstante, no âmbito deste Município, tenha a isenção da Taxa de Funcionamento, tal fato não lhe exime de obter a respectiva Licença de Funcionamento, em virtude da existência de norma legal lhe impondo tal obrigação.

Prefeitura de SP ignora Constituição e súmulas do STF


A pretexto de consolidar as normas que regulamentam o ISS a prefeitura paulistana baixou o Decreto nº 53.151 publicado em 18 deste mês e já em vigor. Quando existia algum bom senso por estas bandas, regulamentos serviam para regulamentar uma lei, explicando como suas normas seriam observadas, quais seriam os livros fiscais se fosse o caso, etc.
A Constituição Federal assegura que ninguém está obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É o conhecido princípio da legalidade absoluta, um dos pilares que sustentam aquilo que nos países que se dizem civilizados chama-se de estado democrático de direito.
As três pessoas que assinam o tal decreto não possuem formação jurídica. Consta que se tratam de engenheiros, economistas ou administradores. Mas não lhes favorece a atenuante da ignorância, pois contam com um amplo quadro de advogados à sua disposição. Aliás, o que é mais triste, até mesmo para defender judicialmente as diversas bobagens que os chefes cometem.
Esse novo decreto de novo não tem nada. No início repete as hipóteses de incidência do tributo, já definidas na lei complementar (nacional) nº 116/2003. Essa repetição é desnecessária, até porque se o município pretendesse alterar alguma coisa isso seria apenas uma anedota ridícula. Só a lei complementar pode definir o fato gerador do tributo.
Pretende ainda o regulamento definir responsabilidades do contribuinte e de terceiros, matérias que se caracterizam como normas gerais de direito tributário, reguladas desde 1966 pelo Código Tributário Nacional. Ao que parece os técnicos municipais ainda não sabem direito qual é o campo de atuação e qual a competência legislativa do município.
Quem deveria refletir sobre o assunto e fazer alguma coisa a respeito (para isso são pagos) seriam os vereadores. Mas eles preferem distribuir títulos honoríficos sem qualquer relevância ou dar nome a vias públicas, praças ou viadutos. Se quando repete o que já está determinado na lei complementar o tal regulamento faz o que não precisa, quando tenta ser inovador a coisa piora.
O artigo 70 do tal decreto afirma:
A Secretaria Municipal de Finanças poderá firmar convênio com as Delegacias de Polícia da Divisão de Investigações Sobre Crimes Contra a Fazenda do Departamento de Polícia Judiciária da Capital – DECAP, a fim de comprovar a veracidade das informações prestadas.
Ao que parece pretendem as autoridades municipais transformar policiais civis em seus subordinados, estafetas ou despachantes. Quando alguém vai à prefeitura fazer uma inscrição no cadastro, entrega documentos tais como cópias do RG, CPF, contas de luz, etc. Agora, deseja a prefeitura que agentes da polícia civil investiguem se tais documentos são verdadeiros.
Esses legisladores tresloucados ignoram vários aspectos práticos a respeito disso tudo. Primeiramente, veja-se que a Lei Orgânica da Polícia Civil paulista não permite esse suposto convênio. Diz seu artigo 6º :
É vedada, salvo com autorização expressa do Governador em cada caso, a utilização de integrantes dos órgãos policiais em funções estranhas ao serviço policial, sob pena de responsabilidade da autoridade que o permitir.
Por outro lado, a Constituição Federal, no artigo 144, atribui à Polícia Civil competência para apurar infrações penais e exercer a chamada polícia judiciária. Não lhe compete realizar pesquisas sobre legitimidade de documentos fiscais, como se fosse subordinada ao fisco municipal. Ela só age nos termos da lei e no seu âmbito restrito de atribuições.
Já se noticiou que uma porcentagem enorme de inquéritos policiais não chegam a esclarecer supostos crimes, porque a polícia não tem meios humanos e materiais para tudo isso.
As Delegacias de Crimes Fazendários, explicitamente citadas no artigo 70, estão sobrecarregadas de trabalho, boa parte como resultado da atuação ensandecida e desordenada de alguns fiscais inclusive municipais, que lavram diversos autos de infração sobre fatos semelhantes envolvendo o mesmo contribuinte, o que implica não no milagre, mas na tragédia da multiplicação dos inquéritos.
Essas delegacias há muito tempo estão necessitando de mudar do local em que se encontram, totalmente inadequado e carente de espaço suficiente para que os trabalhos sejam feitos com o mínimo de conforto que funcionários e público merecem.
Ademais, conferência de documentos no serviço público é muito simples. Estamos na era da internet e com os recursos da tecnologia os servidores municipais podem e devem se desincumbir dessa tarefa. Pretender usar serviço de policial onde não há crime é apenas mais uma tentativa ridícula de constranger o contribuinte. Parece que a secretaria de finanças pretende se especializar nessa atividade: constranger, criar problemas, aborrecer, gerar prejuízos, etc., tudo com o objetivo de impedir que as pessoas trabalhem.
Qualquer habitante desta que é a maior cidade do país sabe que a atividade que mais cresce por aqui é a de serviços. Essa é a vocação natural das grandes metrópoles no mundo todo. Todavia, a prefeitura quer inverter o curso da história e tentar atrapalhar ainda mais nossa cidade.
O nosso governador há alguns anos afirmou que nosso estado estava perdendo indústrias e deixando de crescer. Ele estava mal informado. Posso invocar como testemunha um fato bem conhecido.
Uma fábrica de ferramentas que tinha sede em Santo André, com cerca de 200 empregados, resolveu mudar-se para Minas Gerais, onde recebeu incentivos. Isso não foi uma perda, mas um ganho. O imóvel onde estava a fábrica em Santo André foi vendido e no local construído um moderníssimo shopping center, onde hoje trabalham cerca de 1.000 empregados, cuja média salarial é muito maior do que a que ganhavam os metalúrgicos que foram para outro estado. Todos ganharam, inclusive o estado.
No mesmo decreto insere-se norma que diz que o inadimplente no ISS não poderá emitir nota fiscal eletrônica. Já tratamos desse assunto em outro trabalho aqui publicado. Nada muda. Decreto não é lei. E mesmo que fosse numa lei contida aquela norma, ela continuaria inconstitucional e ferindo 3 súmulas do STF. A prefeitura errou antes e decide persistir no erro. Quem afirmou que há erro são as diversas decisões judiciais, todas a favor dos contribuintes.
O decreto ainda tenta dar legitimidade a interpretações ilegais das normas tributárias em vigor. O seu artigo 4º, ao tentar definir o que é estabelecimento, traz uma pérola : diz que para configurar estabelecimento o local tem que ter
I – manutenção de pessoal, material, máquinas, instrumentos e equipamentos próprios ou de terceiros necessários à execução dos serviços
II – estrutura organizacional ou administrativa;
III – inscrição nos órgãos previdenciários;
IV – indicação como domicílio fiscal para efeito de outros tributos;
V – permanência ou ânimo de permanecer no local, para a exploração econômica de atividade de prestação de serviços, exteriorizada, inclusive, através da indicação do endereço em impressos, formulários, correspondências, site na internet,propaganda ou publicidade, contratos, contas de telefone, contas de fornecimento de energia elétrica, água ou gás, em nome do prestador, seu representante ou preposto.
Isso comprova que a prefeitura quer dificultar a ação das empresas que tenham sede em outros municípios e que se utilizam dos chamados escritórios virtuais. Todavia, os escritórios são LEGAIS, pagam impostos e podem funcionar normalmente, o que ocorre há décadas em muitos países. A atividade de escritório virtual está consagrada na lei complementar 116 e reconhecida no próprio decreto aqui citado.
Há muitos outros aspectos a comentar no decreto. O principal é denunciarmos essa desarmonia que existe entre o programa político anunciado pelo prefeito em sua posse e o que vem sendo praticado. Ele anunciava uma administração dinâmica, preocupada com o desenvolvimento da cidade e o bem estar da população.
Hoje, infelizmente, o que vemos é uma prefeitura que, por meio de uma administração fazendária arrogante, ignora a Constituição Federal e súmulas do STF e vive o tempo todo sacaneando o contribuinte. Parece ter interesse em impedir que as pessoas trabalhem.
Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2012

Comentários

  1. Caro Raul Haidar

    Concordo com praticamento todos os seus argumentos, exceto em relação ao que foi dito sobre estabelecimento prestador, uma vez que esta mesma configuração está disposta na LC 116,norma geral devidamente respaldada pela CF.

    abraços

    Andrea

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